25. Aceitamos o amor que achamos que merecemos
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Iaakov Markovitch pensou consigo mesmo: há pessoas que caminham pelo mundo como se tivessem caído nele por engano, como se a qualquer momento alguém fosse pôr a mão em seu ombro e gritar em sua orelha: “O que é isso? Quem lhe permitiu entrar? Por favor, rápido, fora daqui”. E há pessoas que não caminham pelo mundo. Elas navegam nele, cortam as águas em todo lugar por onde passam, como um barco seguro de si.
Em “Uma noite, Markovitch”1, a israelense Ayelet Gundar-Goshen conta a história de um homem sem atrativos físicos aparentes que, unido por acaso à mulher de seus sonhos em um casamento de fachada, recusa-se a conceder-lhe o divórcio quando é chegada a hora. Iaakov “tinha a sensação de que não era senão uma figura secundária na história dos outros”, conta Ayelet, até que Bela entra em sua vida e ele resolve lutar: “tudo o que acontecera até então tinha sido apenas um esboço, rabiscos distraídos de um artista um momento antes de começar o desenho real, intencional”.
No meu apartamento em Porto Alegre, a frase “we accept the love we think we deserve”2 está bordada em um bastidor preso à parede da sala. Markovitch até então havia aceitado o que a vida lhe deu: ao impedir que Bela se desvencilhasse, foi em busca daquilo que achava querer. Encontrou frio e desamparo.
Pergunto: que tipo de amor você crê que merece? Que tipo de amor eu creio merecer?
Navegamos o mundo como barquinhos, sim, mesmo sem aproveitar de forma completa a liberdade. Eu, pelo menos, vou velejando por aí sempre à espreita de algo que me pare; que, de súbito, o vento se recuse a soprar minhas velas e que o próprio mar se dirija à embarcação, indignado: “O que é isso? Quem lhe permitiu entrar? Por favor, rápido, fora daqui”.
Nas histórias de amor que me contei ao longo da vida, nunca ninguém ficou. Por que será? O tal senso de inadequação é tanto que isso parecia impossível. Quando criança, muitos de nós somos ensinados a querer o que nossos pais têm. Eu pelo menos fui. Depois fui condicionada a não querer nada daquilo. O que querer? Em quem confiar para saber o que querer?
Uma impressão que eu tenho é que toda a infância é melhor do que a anterior. Em um diagnóstico bastante simplista, vejo pelos amigos pais e mães que há um desejo de criar seus rebentos com confiança, apenas: confiança de que serão amados, sejam quem forem. Minha geração, a geração desses amigos que se tornam agora pais e mães, talvez tenha sido moldada por um desejo familiar do qual já falei aqui anteriormente: o de ser universalmente gostável. Todas as falhas precisam ser escondidas para que apenas o lado bom brilhe para o mundo. Na geração dos pais de nossos pais, a procriação ainda era uma imposição avassaladora, então vai sai saber se as pessoas sequer queriam ter filhos. Pensando de maneira reversa (e óbvia), cada geração projetou na próxima as inseguranças com que foi criada. Se uns não se importavam com nada (que simplesmente sejam), outros se importavam demais com tudo (que sejam perfeitos) – os últimos resolveram se importar apenas com o que importa (que sejam livres, que saibam encontrar a felicidade).
Terminei, na última semana, a leitura de “Talvez você deva conversar com alguém”, da psicóloga norte-americana Lori Gottlieb. A partir do momento em que rompe um relacionamento, ela se vê na mesma situação de Iaakov Markovitch – inadequada, à espera daquela batidinha no ombro que sentenciará: “Quem lhe permitiu entrar? Por favor, rápido, fora daqui”. Sustentando-se nas histórias de um quarteto de pacientes, combinadas à própria busca por terapia, Lori escreve um belo tratado sobre como às vezes precisamos nos ver de longe para conseguir nos ver de perto.
Quando aborda a tristeza de uma senhora que beira os setenta anos sem se achar digna de amor pelos descaminhos de passado, ela fala da solidez de padrões que criamos para nos refugiar naquilo que é conhecido, mesmo que o conhecido nos faça mal, muito mal. Rita, a paciente, culpa-se por ter ficado inerte ao ver os filhos sendo sistematicamente agredidos pelo primeiro marido. Sentia-se incapaz de retomar as rédeas da própria vida – depois de uma infância solitária, não queria privar os filhos de um pai e, talvez mais decisivamente, não queria se privar de um companheiro – e perdeu o respeito da família, perdendo, no processo, o respeito por si. Eis que, no processo da terapia, ela se descobre cercada de novas possibilidades de amor. Parece tarde demais. Encapsulada por seus fantasmas, Rita não quer dar as mãos à felicidade, ver o que há fora daquele casulo. Diz Lori3:
Estava acostumada a ver o mundo de um lugar de déficit, e, como resultado, a alegria lhe era estranha. Se você está acostumado a se sentir abandonado, se já sabe qual é a sensação de se sentir decepcionado, ou rejeitado pelas pessoas, talvez não seja bom, mas pelo menos não há surpresas; você se sente em casa. No entanto, uma vez que você entra em território estrangeiro, se passa tempo com pessoas confiáveis, que o acham atraente e interessante, pode se sentir ansioso e desorientado. De uma hora para outra, nada é familiar. Você não tem marcos, nada para se basear, e toda a previsibilidade do mundo a que está acostumado sumiu. Talvez o lugar de onde você veio não seja formidável; poderia, na verdade, ser bem terrível, mas você sabia exatamente o que encontraria lá: desapontamento, caos, isolamento, desaprovação.
Já disse e repito: nunca tentei ser universalmente agradável. Acho que, por ter tido tantas provas de não ser uma pessoa agradável, por muito tempo desisti de tentar. Longe de ser simplesmente o que sou, no entanto, me armei de espinhos que regeram grande parte das relações que tive na vida: “Ah, vocês não vão gostar de mim? Pois sou eu que não gosto de vocês”. Ver o mundo de um lugar de déficit – as pessoas, em sua maioria, sequer nos fazem caso enquanto pensamentos como esse passam por nossa cabeça. A falta está dentro de nós. Nas histórias de amor que me contei ao longo da vida, nunca ninguém ficou. Não foi porque nunca ninguém quis ficar. Foi simplesmente porque o sofrimento da partida, o sentimento de ilegitimidade, era o mais confortável para mim.
Tornar-se um adulto completo é romper com narrativas desse tipo. Cresci achando que minha curiosidade a respeito do mundo era sinal de burrice. Saciei a curiosidade me refugiando nos livros. Fez mal? Não. Mas aprender com um livro é muito diferente de aprender com uma pessoa. Nas histórias de amor que me contei ao longo da vida, nunca ninguém ficou. Mas, se eu achava que seria meu não saber que afastaria o amor em potencial, o que afastou talvez tenha sido um apego demasiado ao que sei.
Uma anotação no caderno argolado: “para amar, desconhecer-se – desfazer-se do casulo, fazer sua cama confortável na própria existência”. Ninguém nasce sabendo do amor que merece em um mundo que por muito tempo nos enquadra, primeiro de tudo, de modo a destacar o que não somos – e escondê-lo. “Às vezes, aprisionamo-nos por uma narrativa de autopunição”, diz a terapeuta do livro. “Se tivermos uma escolha entre acreditar em uma de duas coisas, ambas podendo ser comprovadas: ‘sou incapaz de despertar afeto’ ou ‘sou amado’, frequentemente escolhemos a que nos faz sentir mal”. Inventar uma narrativa saudável de si é como deixar de se prender às barras de uma cela de prisão cuja porta está aberta.
A porta sempre esteve aberta.
Mais difícil do que navegar pelo mundo com segurança, eu diria ao desamparado Markovitch, é aprender a navegar, simplesmente. O amor que todos merecemos é um amor que nunca, nunca nos puna.
Ainda não terminei de ler. Espero que Markovitch encontre o amor que procura. (Compre aqui).
“Nós aceitamos o amor que achamos que merecemos”, em português. A frase está em “As vantagens de ser invisível”, de Stephen Chbosky, cuja adaptação para o cinema vale muito a pena assistir (disponível na Netflix).
A tradução e a revisão da edição brasileira deixam bastante a desejar. O conteúdo ainda vale a leitura, mas recomendo o original, por via das dúvidas.