67. Alguém com quem observar baleias
Minhocas fazem casa embaixo da terra, mas não necessariamente um lar
Como afastar pessoas e não fazer amigos, capítulo 27: o ano era 2018 e eu sabia no fundo do umbigo que a recém-contratada analista de dados seria a minha melhor amiga. Tanto mais razão para que eu orquestrasse um primeiro encontro desastroso: quando Ana me viu pela primeira vez, eu tentava explicar a um público desinteressado as duas etimologias possíveis para a palavra “minhoca”:
- Alguns dizem que vem do quimbundo e quer dizer cobrinha. A que eu acho mais interessante é a versão que junta inglês e tupi, mine e oca, para explicar quem faz casa sob a terra.
É claro que ela não sabia que aquele era meu jeito de mostrar as penas, de dizer “veja, eu não sei contar, mas sei algo”.
Quando estive muito triste, o Guilherme - colega de faculdade e de amor às coisas simples - me levou para o que, na minha memória, ficou guardado como um tipo especial de observação de baleias: depois de uma olhada na página do Aeroporto Salgado Filho, na hora combinada, minha tarefa era abrir bem o vidro e me deitar sobre a janela do Versailles 1993. Sem reclamar, eu tentava manter as costas paralelas a solo, evitando ao máximo assumir a derrota de uma flor murcha, de uma uma hortênsia suicida. Naquele automóvel, tínhamos uma certeza apenas: logo mais, logo menos, avistaríamos uma baleia das grandes.
Há uma coisa que une os iguais, uma coisa que não se explica: quando a baleia - um Boeing qualquer, saindo daquele ponto para não sei qual outro, passou por cima do meu corpo deitado, muitos e muitos metros acima, senti ali um pertencimento que se repetiu muito pouco. Se você quiser ver uma baleia, diz meu livro infantil favorito1, vai ter que ignorar as rosas com todo o seu cor-de-rosa, toda a sua delicadeza, toda a sua rebeldia e o seu balanço, porque as rosas não querem você observando baleias ou esperando por ou pensando em coisas que não sejam cor-de-rosa e coisas que não sejam delicadas e coisas que não sejam rosas. Naquele momento, nada mais importava. Nem as rosas, nem a tristeza que eu havia tentado confessar momentos antes sem muito sucesso.
Às vezes, você precisa do zumbido quase ensurdecedor de um avião. Você precisa rir como uma maníaca do ridículo de uma baleia voadora (a única legítima até então sendo aquele goleiro da Sampaio Correia). De alguém com quem rir junto.
Agora faz tempo que não me perguntam se eu gosto ou não gosto de São Paulo. Minha resposta mais comum era que eu gosto, mas não gosto. Dois anos por aqui me tornaram uma pessoa tão mais aberta - houve quem dissesse não conhecer alguém tão disposta a fazer amigos quanto eu - quanto mais machucada. A única solução foi criar novos lugares de conforto embaixo da terra: deixar bilhetes elogiando a playlist de churrasco das vizinhas no pátio contíguo, caminhar com a mascote da pet shop ao lado até a padaria da esquina, agradecer gentilezas com bolo.
Quando mudei de bairro, uma das vizinhas - a magérrima dona Célia, idade de tudo e de nada, acompanhada constantemente pela artrítica vira-latas Lola e por um cigarrinho - foi tão gratuitamente gentil que me instigou a assar um bolo de cenoura como agradecimento. Veja: o apartamento no bairro melhor foi abandonado por falta de fundos; precisávamos encolher o orçamento, a vida não está tão fácil. Mas eis-me aqui, tentando; e eis a vizinha, dois andares acima, fazendo o possível para que a mudança seja mais suportável. Tá todo mundo tentando, afinal. Ela mesma, que parecia tão de casa, só habita aquele apartamento, só habita esta rua, desde metade do ano. Depois do bolo de cenoura, entregue com as mãos um pouco suadas, dona Célia bate à porta equilibrando as maiores panquecas que já vi no prato em que lhe entreguei o bolo. Foi o que precisou para o apartamento menor, no bairro pior, virar uma casa.
Desde então, batemos uma à porta da outra com geleia de morango, com requeijão caseiro, com pãezinhos. Dona Célia me chama de filha - outras senhoras na rua têm o mesmo costume; vindo delas, entretanto, eu estranho.
Pertinescere, forma verbal da qual nasce nosso pertencer, não tem uma etimologia tão interessante. O prefixo per dá o sentido de totalidade, o radical tenere expressa a posse de ou a inclusão em algo. Possuir e compreender, confesso, dizem cada vez menos. Mas Ana poderia muito bem ter me flagrado explicando que o latim presta atenção a muito mais do que nós duas: pertinescere é um verbo de aspecto incoativo, forma que designa o início de uma ação. No português, o envelhecer e o adormecer, são o começo da velhice e do sono. A sensação de começo se perde no pertencimento - tem ou não tem, inclui ou não inclui.
A sensação de pertencimento, entretanto, é gradual. Há uns meses, sonhei que me percebia grávida e em trabalho logo depois de entregar a Ana, ao quarto de hospital onde ela daria à luz. Recém-paridas, nos recuperávamos no mesmo quarto como se aquilo fosse o destino, mostrando a bola de cristal saída de nossas entranhas uma para a outra enquanto comíamos uma tábua de frios e bolinhos de chocolate. Quando lhe contei a história, ela riu: “a gente obviamente dividiria uma tábua de frios no hospital”. Meses depois, ela me sonha estar escolhendo um presunto com o qual me presentear. Eu ri. Talvez um amor por charcutaria nos una inconscientemente, mas o fato é que, sempre que preciso me despedir da Ana, é como deixar para trás uma casa mobiliada. E, no momento, é como se a casa que habito não tivesse nem o sofá, nem o fogão. Ainda falta.
Uma amiga escreveu, dia desses, que sente falta dos afetos próximos, de ligar e combinar qualquer coisa com:
— Vamos?
— Vamos!
Um segundo ano, algo que parece tanto, mas é tão pouco, ainda me coloca muito longe do pertencimento em seu aspecto incoativo. Voltando àquele sonho, parir ao mesmo tempo que a Ana, mas não passar pela gravidez, pode muito bem simbolizar que sinta a filha que ela de fato tem como um pedacinho de mim também. Funciona assim, afinal: algo simples como uma minhoca nos faz encontrar partes nossas que sequer suspeitávamos existir.
Não há com quem ver baleias, mas é questão de tempo.