Eis por que jamais conseguimos ensinar um gorila a conversar: um gorila não tem interesse em conversar.
Nos anos 1950, John C. Lilly – cientista norte-americano mais conhecido por seus experimentos sobre os efeitos do LSD – se propôs a ensinar inglês a golfinhos. Com um grande argumento:
“Suspeito que baleias e golfinhos naturalmente se inclinem à direção que chamamos de espiritual, chegando a estados meditativos de forma simples e fácil. Se você entrar no mar com um snorkel e uma máscara e água morna, você pode se encontrar facilmente nessa direção. Flutuar livremente é arrebatador... Agora, se você combinar snorkeling e mergulho a uma viagem espiritual com as pessoas corretas, você pode entender golfinhos e baleias bem rapidamente.”
Durante o experimento de Lilly, golfinhos foram sacrificados com pouca perícia. Golfinhos usaram LSD sem que efeito algum fosse percebido. Um dos golfinhos estudados acabou se apaixonando pela cuidadora no infame caso da mulher-que-fazia-amor-com-o-golfinho (o golfinho depois veio a se matar prendendo a respiração). Os cientistas aprenderam que os golfinhos podiam sinalizar por meio de botões, se instruídos. Mas, evidentemente, os golfinhos não aprenderam a falar inglês.
Pouco depois, a ânsia humana de saber o que têm a dizer os animais chegou à primatologia. Dessa vez, houve menos vítimas até que se chegasse a uma conclusão que, vista daqui, parece óbvia: as cordas vocais humanas são cordas vocais humanas. A vocalização de golfinhos, de chimpanzés e de gorilas não obedece à das cordas vocais humanas. Como ensiná-los a se comunicar, então? Em uma época na qual a surdez era altamente estigmatizada, demorou até que a comunidade acadêmica tivesse a iniciativa de treinar primatas em linguagem de sinais.
O exemplo mais conhecido desse tipo de estudo é o da gorila Koko. Ao longo de seus quarenta e seis anos de vida (Koko morreu dormindo tranquilamente, num santuário da Califórnia, em 2018), o grupo de pesquisa que a acompanhou afirma que a primata aprendeu cerca de 1,1 mil palavras e tinha a capacidade linguística de uma criança de três anos. Sua “mãe”, a psicóloga animal Penny Patterson, de Stanford, ensinou a gorila a entender e usar a linguagem de sinais humana desde seu primeiro ano de vida. Muitos dos sinais da linguagem constituída pelas duas foram inventados pela própria Koko, como a junção de “pulseira” e “dedo” para sinalizar a palavra “anel” ou de “copo” e “gelado” para “sorvete”. Há uma infinidade de vídeos documentando a relação entre Patterson e Koko. Muitos deles são divertidos, como o encontro da gorila-prodígio com o ator Robin Williams. Mas, conforme assistimos ao crescimento de Koko, chama atenção sua tristeza. Retirada do convívio dos seus, ela foi ensinada a expressar coisas cuja dimensão não entende, forçada ao esforço linguístico de sinalizar sentimentos que não sabemos se tem. A pesquisadora pergunta, pergunta, pergunta. O animal sofre até responder qualquer coisa, ver se assim arranja sossego.
Pode ser que a comunicação seja essencial a todas as espécies – mas, até onde sabemos, a conversa é essencial apenas aos seres humanos. Dito isso, também é sabido que nós falamos há muito tempo. Há quanto tempo conversamos, no entanto? Quando foi que paramos de estar juntos para preservar a espécie e começamos a ter curiosidade sobre a essência de quem divide o espaço conosco? Na antiguidade grega, Pitágoras adere à vida comunal e funda a escola em Crotona, onde aprendentes e ouvintes convivem sob o lema “todas as coisas em comum entre amigos”. Os pitagóricos, embora vivessem sob um regime esquisito de segredos, alimentação regrada e ditos babacas (eles não podiam recolher migalhas e deviam calçar a sandália direita antes da esquerda), formaram uma comunidade que muito descobriu sobre as propriedades dos números – e sobre o quadrado da hipotenusa. Talvez o matemático grego tenha sido um dos primeiros a exemplificar para o mundo que juntos somos melhores, mais inteligentes. Muitos anos depois, Pedro Abelardo aborda uma questão inédita: há uma entidade genérica para aquilo que é universal? Será que, ao pensar em deus, penso na mesma figura em que pensava Pedro Abelardo quando pensava em deus? E em um abacaxi? E em uma girafa, uma mesa de sinuca, uma gaita de foles, um copo americano?
Conversamos porque é com os outros que aprendemos o mundo. Se o behaviorista B.F. Skinner afirma que a linguagem se aprende a partir de uma série de acertos acidentais recompensados (um nenê que, em meio a um monte de qualquer coisa, diz “mamãe”), o linguista Noam Chomsky defende que o ser humano nasce com o gene da linguagem. É uma capacidade de associação que nos acende o mecanismo de formação da sintaxe mental e falada. Para fazer associações, precisamos ouvir e entender. Precisamos falar o que entendemos para ouvir, entender e falar e ouvir, entender e falar. Estou com Chomsky: caso contrário, Koko poderia ter ditado uma autobiografia.
Nossa capacidade de debate rendeu os mais belos saltos sociais evolutivos – os salões de conversa iluministas não só juntavam pessoas com a habilidade de discutir diversos assuntos, como também foram cruciais para que homens e mulheres pudessem se aproximar em amizade por meio da cultura. Revoluções começam com indignação? Sim, mas uma ação só ocorre quando ela é organizada por meio de conversas. A nada se chega falando para as paredes.
Então por que a sensação cada vez mais sufocante de que é impossível conversar? Entendo que, em tempos de confinamento, só a possibilidade de ter um interlocutor de carne e osso diante de si é um convite para desabafos longos. Mas e quem convive de forma mais ou menos constante? Sempre defendi meu direito de não falar, de não ter opinião e de passar longos momentos de silêncio olhando para o céu e pensando em que será que o Pedro Abelardo pensava quando pensava em uma girafa. Eu me esquivo de reuniões decisórias no trabalho como uma pugilista e muitas vezes uso a frase “meu parecer não é necessário”. Mas não é que eu não goste de conversar – eu gosto, embora talvez goste mais de ouvir. Só que o debate, depois desse ano de isolamento e de polarização política, está enferrujado. E, não, eu não vou nem falar do quiproquó do Big Brother. Nos encontramos e o que sai de nós não tem nada de empatia, e sim de performance: eu preciso lhe dizer tudo o que penso e tudo o que sou antes que você saia daí. Eu preciso contar tudo o que ficou engavetado na minha cabeça. E vou interromper até conseguir terminar. O ouvinte vira uma pilastra e a conversa entre o outro e ele mesmo ganha patamares ininteligíveis para você, que começou aquele compromisso social tão arriscado interessado em saber de alguém que, no final das contas, quer falar para você. Não com você. Você-pilastra volta para casa, envergada por interrupções, deita-se e não consegue dormir: precisa dizer que algo vai mal.
Querido diário, estou cansada de ouvir.
História de Carnaval: no ano passado, conheci o amor da minha vida em um baile ao qual fui fantasiada de estrela. Tomamos um banho de chuva e, em algum momento, ele me disse que nos veríamos em algum outro dia, no qual ele me faria perguntas e eu daria respostas e poderia lhe fazer outras perguntas: “a isso dão o nome de conversa”, ele disse, e eu devo ter rido e jogado o cabelo para o lado, purpurina em todas as partes do corpo. Fato é que jamais vi o homem novamente e que no outro mês conheci outro amor da minha vida e que depois veio a pandemia. A cada dia que passa, expande-se o diâmetro da câmara de eco. Sem uma mesa de boteco, em que procuramos o conforto dos iguais mas dividimos o espaço com discordantes, restamos nós e nós mesmos, com um medo incapacitante de deixar de saber ao aprender. Esquecemos que, juntos, somos mais inteligentes: precisamos dizer aqui e agora que estamos vivos, que estamos certos. E eu, que sou ouvinte, mas gosto tanto de interpretar, não sei como me sinto – quem sabe como um gorila que, em meio a tanto estímulo, já não sabe mais se quer dizer alguma coisa. Mas tenho saudades de ouvir perguntas e de dar respostas para fazer outras perguntas e receber respostas. Era bom conversar.
Era bom conversar no Aldo, comendo barato e falando da vida.
Eu amei muito esse! :)